Ditadura e racismo:
dois lados de uma
mesma luta
Revista Contra Corrente - Editora Iskra.
Fundado
sob a escravidão, o Brasil carrega na sua história o sangue das
negras e negros
roubados
de sua terra para cumprir o papel que o mercantilismo inglês
comandava: grandes plantações de cana de açúcar que, junto à
“mercadoria” humana da África, geravam os exorbitantes lucros
que constituíram uma das bases do desenvolvimento pioneiro do
capitalismo na Inglaterra.
No
apogeu da hegemonia inglesa, a Europa se vê atravessada pelos ideais
da Revolução Francesa, de igualdade, liberdade e fraternidade. O
decorrer da história demonstrou rapidamente como essa igualdade se
restringe aos que têm posses, a liberdade apenas à circulação de
mercadorias e capitais, e a fraternidade, quando a diplomacia não dá
lugar a guerras, se resume às negociações entre a classe burguesa,
que se
confraterniza contra seus inimigos trabalhadores.
A
Revolução Francesa encontrou na questão colonial um importante
dilema. Igualdade, liberdade, fraternidade se tornaram formalmente
opostos à vasta rede colonial francesa. É seguro dizer que o
tratamento dado às colônias pela burguesia no poder foi um limite
claro da Revolução Francesa. Os entraves liberados pela tomada da
bastilha foram
contidos
com força nas colônias, não somente pelos setores mais
privilegiados da nova classe dominante, como também pelas classes
dominates na França. Manter as colônias sob o regime escravista era
um interesse compartilhado entre os novos e antigos donos do poder.
Entretanto, conquistar os direitos políticos obtidos no continente
tornou-se sinônimo, nas colônias, de defesa da Revolução Francesa
contra a reação.
Foi
sob o calor da Revolução Francesa, e a princípio em seu nome, que
a mais profunda revolução negra – em São Domingos – tomou
corpo. Toussaint L’ouverture organizou os escravos insurretos sob o
som da Marseillaise contra a escravidão e osdonos
de terras locais, representantes da velha ordem. Contudo, a luta
contra a escravidão, que garantiu liberdade aos negros em 1794,
mostrou-se indissociável da busca por independência politica,
obtida em 1804 em luta direta contra o mais poderoso exército da
época.
Ainda
hoje o Haiti sofre as consequências das dezenas de empréstimos
realizados para pagar os US$ 90 milhões de indenização exigidos
pela França por ter conquistado sua independência.
Em
meio a toda a ideologia burguesa, o discurso da igualdade torna-se
lei geral. Este não se aplica à realidade, mas cada indivíduo toma
para si o que apenas para a classe burguesa é realidade2.
Quando se diz que há racismo, exemplos de ascensão social dos
poucos negros de classe média ou que assumiram postos de poder no
capitalismo são vomitados. Obama torna-se um líder para uma série
de setores do movimento negro, demonstrando à grande massa negra e
pobre que é possível que um negro ocupe um lugar de destaque dentro
do capitalismo. Contudo, estes netos, bisnetos e tataranetos de
escravos continuam sofrendo as mazelas da precarização do trabalho,
do desemprego, da falta de moradia e das péssimas condições de
saúde e educação.
Após
a abolição da escravidão no Brasil, o povo negro se viu
substituído pelo trabalhador europeu, importado como mão de obra
barata em lugar do trabalhador escravo que vinha há séculos se
colocando em luta contra a sua condição social.
Esses
trabalhadores, com a abolição, passaram a uma condição de pária
social, por fora de toda a produção, impedidos pela Lei de Terras
de se assentar na terra abundante para cultivar para sua própria
subsistência. Foram condenados a vagar pelos campos formando
quilombos - logo reprimidos - ou se aglomerar em favelas nos centros
urbanos, submetendo-se aos piores trabalhos e ao desemprego. Quando
pensamos a questão negraligada
à historia de nosso país, é possível entender porque são os
negros os que reclamam terra nos movimentos sem-terra, porque são os
negros que reclamam moradia nos grandes centros, território da
especulação imobiliária.
Diferentemente
dos EUA e demais países imperialistas, que avançaram na realização
de reformas democráticas estruturais consolidando as bases para sua
expansão colonial, no Brasil as questões democráticas estruturais
mais importantes, como a questão agrária e a questão urbana, nunca
foram encaradas de forma minimamente séria pela classe
dominante. Questões como a terra, a educação e a moradia só
poderiam ser seriamente encaradas a partir de uma ruptura com o
imperialismo, o que a subserviente burguesia brasileira nunca
cogitou, pelo medo do proletariado e das massas camponesas e por sua
dependência orgânica em relação ao capital estrangeiro. É nesse
marco que o Brasil se desenvolve como um país estruturalmente
dependente do trabalho precário, da mão de obra não especializada
e semianalfabeta, tendo o racismo cumprido um papel historicamente
fundamental para a reprodução dessa estrutura. A existência do
racismo no Brasil é parte fundamental da manutenção da localização
semicolonial do país a nível mundial. Se, mesmo num país como os
EUA, que realizou sua própria reforma agrária, a opressão
histórica ao povo negro foi fundante para a formação do seu
capitalismo, num país atrasado como o Brasil essa opressão cumpre
um papel ainda mais estrutural, inseparável da questão agrária e
da questão urbana.
Questões
como essas, em um país semicolonial como o Brasil, passam a ter um
caráter necessariamente anti-imperialista, irrealizáveis por uma
democracia burguesa. Trotsky, na Teoria da Revolução Permanente,
demonstra que dentre as tarefas de uma revolução socialista levada
à frente pela classe trabalhadora num país semicolonial, está há
de aliar-se aos povos que exigem essas demandas democráticas, pois
estes precisam necessariamente colocar-se contra o imperialismo que
explora essa nação, assim como contra a burguesia nacional
submetida ao capital estrangeiro, para que estas demandas sejam
realizáveis. Ou seja, encarar seriamente essas questões
democráticas estruturaise
históricas depende da existência de um Estado que não seja palco
dos negócios burgueses, de uma economia destinada a todo o povo, não
ao bolso cheio de uma já confortável burguesia.
Racismo
e ditadura militar
Sob
uma condição de miséria advinda da escravidão e da libertação
que nos lançou sem empregos e sem terras por todo o país, jamais
deixamos de ocupar o espaço do trabalhador mais precário. Tanto
ontem quanto hoje, para controlar essa situação, é preciso que se
reprima duramente o povo negro, com as forças armadas do Estado operando
violentamente sobre a primeira população a sentir a precarização
da vida, a concentração de renda nas mãos de poucos e o
crescimento da miséria para a maioria.
Quando
a situação de contenção social torna-se mais dificultosa, a
burguesia recorre à ditadura militar, que, apesar de ser um regime
distinto da democracia, tem o mesmo conteúdo de classe, de um Estado
palco dos negócios da burguesia, que se utiliza da justiça a seu
bel prazer, dos impostos para salvar suas indústrias, da polícia e
do exército para conter as contradições do seu sistema. Não à
toa, esse regime aparece em nossa história justamente nos períodos
de crise econômica somada à crise política, ou seja, quando, ao
mesmo tempo em que é atacada, a classe trabalhadora passa a
questionar o regime e o sistema capitalista.
Em
todos os momentos de acirramento de crise econômica no Brasil é
possível ver como o povo negro, o mais próximo das contradições
sociais, também se organiza e se rebela, e, como parte da classe
trabalhadora, tem sido também historicamente reprimido pela
burguesia nacional a serviço dos monopólios estrangeiros e
nacionais. Mesmo antes da existência do capitalismo no Brasil via-se
o exército nacional reprimindo os quilombos de Palmares, de Minas
Gerais, do Mato Grosso, do Jabaquara e assassinando os Malês que se
revoltavam. São também os responsáveis pela morte de milhares na
investida contra a população de Canudos. São os mesmos que
expulsam da corporação João Cândido e outros que participaram da
Revolta da Chibata, alegando que sua reivindicação pelo fim dos
castigos físicos aos negros caracterizava desobediência à
hierarquia.
Em
sua fase capitalista, as cidades brasileiras se industrializam,
aumentando a concentração populacional nos grandes centros urbanos.
Surge assim a necessidade de um destacamento militar ara controlar as
novas tensões sociais das cidades. A Polícia Militar de São Paulo,
por exemplo, se origina da milícia Bandeirante, fundada em1831,
quando São Paulo já se consolidava como uma das mais importantes
cidades do Brasil, tendo seu próprio porto, faculdade e biblioteca.
Os bandeirantes já tinham em sua memória mais recente a exploração
e a demarcação de terras a serviço dos latifundiários, bem como a
captura de índios para escravização, o castigo e a perseguição a
escravos fugidos, a destruição dos quilombos e o assassinato de
seus moradores.
Durante
a ditadura militar, o capitalismo se desenvolveu no Brasil aumentando
as contradições internas às grandes cidades. Propagandeado como um
período de progresso econômico no Brasil, o “milagre
brasileiro”, nomeado dessa maneira devido ao aumento recorde do
Produto Interno Bruto, nada mais foi do que uma maior abertura
econômica para a entrada de capital estrangeiro em território
brasileiro, deixando o Brasil ainda maissubserviente.
Diferente do propagandeado, esse capital em expansão crescente
advinha de um endividamento internacional em larga escala e em nada
favorecia a população, pois para se reproduzir se apoiou na
superexploração do trabalho, com um arrocho salarial que acompanhou
o desenvolvimento técnico das fábricas. O empobrecimento crescente
das massas operárias, a repressão pelo AI-5 e o desaparecimento de
dirigentes sindicais
gerava
uma profunda indignação contra o regime.
O
regime militar também se apoiou no investimento em obras públicas,
eixo essencial para o desenvolvimento industrial, automatizando o
transporte de mercadorias e estabelecendo alianças com a burguesia
nacional que financiava o regime, como os capitalistas das grandes
empreiteiras (por exemplo: Camargo Correa, Odebrecht etc). Para obter
uma alta taxa de lucro, a burguesia se debruça sobre a classe
trabalhadora mais pauperizada, em sua maioria negra, impondo-lhe
salários de fome.
A
ditadura se especializa então não só em reprimir exemplarmente a
classe trabalhadora, como também em lançar balas contra a população
negra que historicamente demonstrou ser o setor da classe
trabalhadora que, no Brasil, sente mais profundamente os ataques da
burguesia.
O
decreto de 29 de setembro de 1969, que de acordo com o texto “Define
os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social
(...)”, determina como crimes políticos incitar:
a
guerra ou a subversão da ordem político-social; a desobediência
coletiva às leis; a animosidade entre as Forças Armadas ou entre
estas e as classes sociais ou as instituições civis; a luta pela
violência entre as classes sociais; a paralisação de serviços
públicos, ou atividades essenciais; o ódio ou a discriminação
racial.
Estabelecendo
como pena a prisão de 10 a 20 anos, alerta: “Ressalvados os crimes
de que tratam os itens V e VI [justamente os que tratam de
discriminação racial], se, do incitamento, decorrer morte: Pena:
morte.”3
De
acordo com os preceitos estabelecidos acima, logo após a promulgação
do AI-5, em 1968, é conformado o “Esquadrão da Morte”, uma
agrupação de policiais civis e militares que tinham como tarefa
executar em massa os ditos subversivos e criminosos. Diferentemente
do que se alegou por muitos anos durante a ditadura, o Esquadrão
tinha uma relação íntima com o Estado, tendo como chefe do grupo
Sergio ParanhosFleury,
delegado do Departamento de Organização Política e Social
(DEOPS)4.
Os
policiais acusados de liderar e participar do Esquadrão da Morte
jamais foram punidos e, aproveitando-se dos rumos “pacíficos” de
transição à democracia, mantiveram-se delegados, comandantes e
oficiais da polÍcia civil e militar.
Em
1981, o militante Marcos Antônio Pereira Cardoso, em uma
Manifestação do Dia da Consciência Negra, em Minas Gerais,
destacava que a abordagem policial em relação aos negros era
diferenciada: “[...] quer onde estejam, eles são procurados para
provarem sua ocupação, e caso não o consigam, são logo presos e
espancados, sofrendo toda sorte de humilhações, [...]”5
Durante
todo o decorrer das décadas seguintes, a polícia continuou
executando as mesmas ações: batidas, seguidas de prisões e
torturas; onde o critério de cor permaneceu determinante. Tal fator
dá ao Brasil um patamar especial quando se trata da repressão. De
todas as mortes de jovens por causas externas, desde 1980 até 2010,
a causa líder é o homicídio, colocando o Brasil como o sexto
colocado no ranking de violência em todo o mundo.
O
BOPE do Rio de Janeiro e a ROTA de São Paulo, hoje especialistas em
matar jovens negros e pobres nas favelas e periferias, são os
herdeiros dos grupos de extermínio do “Estado de exceção”,
educados durante a ditadura a conter as revoltas negras que emergiam
nas favelas, fruto do agravamento da precarização da vida advinda
do “milagre brasileiro”.
Em
2010, aproximadamente 79% dos entrevistados pelo “Mapa da
Violência”6
alegaram
ter medo de serem assassinados, sentimento justificado pelo alto
número de homicídios no país: são mais de um milhão de mortos
por homicídio em 30 anos, número que se torna mais alarmante quando
comparado aos números das guerras civis. A guerra civil angolana,
que perdurou de 1975 ate 2002, teve 500 mil mortos, enquanto a guerra
do Iraque e Afeganistão juntos somaram 89 mil mortos até 2007. De
203 a 2010, a guerra no Iraque matou 86,5 mil pessoas8,
enquanto, no mesmo período, o Brasil teve perto de 350 mil mortos
por homicídios9.
Um
dos fatores marcantes que dá ao Brasil dados superiores aos de uma
guerra civil é a violência policial. De 2000 a 2010 em São Paulo,
dos mais de 66 mil mortos, mais de 6 mil foram vítimas da ação
policial, proporção bastante superior à média mundial. Dados de
2010 mostram que a cada policial morto em uma ação, morrem 15,5
civis10, revelando que, ao
contrário do que se alega nas grandes mídias, não há uma real
situação de confronto, e sim de homicídios deliberados,
verdadeiros genocídios. O Grupo Tortura Nunca Mais, que há pouco
sofreu um atentado, tendo sua sede carioca invadida, denunciou
durante a ocupação dos morros do Rio pelas Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) as centenas de execuções sumárias escondidas
sob o termo judicial de “autos de resistência”.
Essa
justificativa é dada pelo próprio policial em ação, que, ao
preencher a ficha de ocorrência, já alega que a vitima é
“delinquente” ou “meliante”, ignorando as possibilidades de
que o caso seja investigado como execução sumária. Os policiais
sempre alegam morte em trânsito ao hospital, visando eliminar dois
obstáculos: o primeiro, de uma acusação de omissão de socorro; o
segundo, da possibilidade de uma análise de cena crime, já que a
alegação é de que a vítima não morreu no local. Curiosamente, de
acordo com estudos de Sergio Verani, em:
Assassinatos
em nome da lei - uma prática ideológica do direito penal (1996), o
termo “autos de resistência” foi criado no ano de 1969, em meio
ao que comumente chamamos ditadura escancarada, após a aplicação
do Ato Institucional número 5 (AI-5) no ano de 196811.Documento
da Human Rights Watch alega que, de acordo com ouvidor-adjunto da
polícia de São Paulo, possivelmente cerca de 80% dos autos de
resistência levantam suspeitas de abuso policial. “Um promotor com
jurisdição nos bairros onde ocorrem os maiores índices de
assassinatos por policiais na cidade do Rio contou à Human Rights
Watch que ele acredita que “quase todos” os “autos de
resistência” que ele acompanha anualmente são ‘farsas’.”12
USP,
racismo e ditadura militar
Em
maio de 2011, a Reitoria da Universidade de São Paulo, através de
Rodas, assinou um convênio que legaliza a entrada da polícia na
universidade e, desde então, essa realiza rondas ostensivas dentro
do campus. Como desculpa, a Reitoria se utiliza dolamentável
assassinato do estudante Felipe Ramos Paiva. O que essa Reitoria
policialesca esconde é que, longe de evitar novas mortes, essa é a
polícia que em 2006 assassinou a trabalhadora terceirizada Cícera,
moradora da São Remo, e que o verdadeiro projeto é garantir a
ordem, a moral e a lisura pregadas na ditadura militar, em oposição
aos que lutam em defesa da universidade pública contra as tentativas
de avanço em sua privatização e sua subordinação aos interesses
dos grandes monopólios.
Em
2009 o Brasil viu a polícia reprimir brutalmente na USP. O motivo?
Perseguir e prender os trabalhadores e estudantes que se manifestavam
contra a demissão do dirigente sindical Claudionor Brandão e em
apoio à greve de trabalhadores.
O
apreço de Rodas pela ditadura militar não é datado desse convênio.
Rodas foi membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos,
encarregado de votar se o Estado havia sido responsável pela morte
de desaparecidos e mortos da ditadura. Em todos os casos em que
esteve envolvido, votou pela absolvição do Estado ou pela não
abertura de casos públicos, como o de Zuzu Angel. Assim como o
projeto da ditadura, o papel que Rodas e seus apoiadores veem para o
povo negro na universidade é o mesmo que se via no projeto de país
da ditadura militar.
Negando
a existência do racismo e da segregação, a Reitoria não admite
que se questione a composição da universidade, se emparelhando ao
AI-5.
Na
USP há, de fato, uma quantidade massiva de negros. Eles e elas
limpam as salas de aula, as escadas, os banheiros. Estão ali como
terceirizados, recolhendo nosso lixo, proibidos de usufruir de todo o
patrimônio que produzem e mantém: não podem utilizaras
creches para deixar seus filhos, tampouco a Escola de Aplicação; os
restaurantes universitários não são para eles, pois, se quiserem
almoçar no mesmo, são considerados “visitantes” e devem pagar
R$12,00. Como alternativa, decidem levar marmitas e comernas
suas salas minúsculas, o único lugar que lhes é permitido, tendo
ocorrido casos de terceirizados que comiam nos banheiros e que são
constantemente proibidos de se juntar aos efetivos nas copas. As
bibliotecas que vigiam e limpam não podem ter livros retirados por
eles. Estes trabalhadores moram na São Remo, favela vizinha à USP,
ou nos bairros pobres da região. A Reitoria tenta, mesmo sabendo que
muitos vêm ao trabalho a pé – fruto da escassez de direitos
trabalhistas constitutiva da terceirização – fechar os portões
que dão acesso à São Remo, alegando que a livre entrada desses
trabalhadores é perigosa para a Universidade de São Paulo.
Não
é possível negar que também haja estudantes negros. Um deles,
Samuel de Souza, de 42 anos, estudante de filosofia, passou mal por
volta das 9h30 do dia 3 dezembro de 2010. Apesar de chamadas à
Guarda Universitária e ao Hospital Universitário, Samuel não
recebeu socorro, e às 10h já estava morto, a pouco mais de 200
metros da Reitoria. Seu corpo permaneceu estirado no mesmo local até
às 16h do mesmo dia13.
Nicolas, estudante negro da unidade Leste da USP, em meio a uma ação
policial na
Universidade, foi provocado por um PM que o questionava sobre sua
carteirinha da USP. A suspeita da cor legitimou o policial a apontar
sua arma contra Nicolas14,
como estão acostumados a fazer com a juventude negra fora da
Universidade.
O
Núcleo de Consciência Negra, que funciona na USP há mais de 25
anos e jamais teve direito concedido pela Reitoria de legalização
de suas atividades, veio sendo ameaçado de expulsão, para a
construção de um projeto arquitetônico megalomaníaco daReitoria.
Não há nenhum indicativo de qual espaço pode ocupar, nem mesmo de
quando sua legalização ocorrerá. Em fins do mês de julho, mais
uma surpresa: o barracão, onde o Núcleo conduz suas atividades,
sofreu um novo ataque e foi parcialmente demolido, tendo o NCN
perdido seu espaço de atuação.
Por
todos esses elementos, é preciso que se encare a entrada da polícia
na USP - através de um convênio que torna tal situação permanente
-, o processo repressivo a mais de 70 estudantes e trabalhadores com
base a esse regimento disciplinar instituído durante a Ditadura
Militar, o reacionarismo anticotas e a crescente terceirização dos
postos de trabalho, como parte de uma mesma política da Reitoria,
constituindo um projeto de universidade ao mesmo tempo burguês e
racista.
Questionar
o racismo na USP é, portanto, lutar pela incorporação dos
terceirizados como funcionários diretos da universidade com salários
e direitos iguais aos efetivos; lutar pela radical democratização
do acesso, acabando com o vestibular, estatizando as universidades
privadas, garantindo mais verbas para a educação para que todos
tenham acesso ao ensino superior de qualidade; lutar pela expulsão
da PM de dentro da universidade ligando ao questionamento do papel
que essa instituição cumpre na repressão aos pobres e aos negros
nas favelas; lutar pela apuração do envolvimento dasinstituições
da universidade e seus respectivos representantes nos crimes da
ditadura militar, ligando essa batalha à luta contra a repressão e
a perseguição – baseadas em um estatuto criado em 1972 - que hoje
são deflagradas sobre estudantes e funcionários que lutam em defesa
da universidade pública. É preciso exigir a retirada imediata da
PoliciaMilitar
de dentro da USP para conformar um espaço de liberdade de pensamento
e organização, ao mesmo tempo em que nos colocamos como tribuna dos
trabalhadores e do povo pobre, que seguem calados e reprimidos à
morte, pois cada momento nosso de silêncio é um momento de
complacência a cada uma dessas mortes.
Questionar
o racismo na USP é também lutar pela construção de um novo
estatuto universitário através de uma Estatuinte livre e soberana
conformada pelos três setores da universidade, colocando abaixo a
aristocracia do reitorado e dos Conselhos Universitários, que seguem
legitimando que os rumos da universidade se deem através dos
interesses de uma minoria vendida e parasita que implementa “por
dentro” o projeto privatizante e
monopolista
de universidade. Uma Estatuinte que enterre os resquícios da
ditadura ainda existentes e questione o caráter elitista e racista
da USP.
Referências
HUMAN
RIGHTS WATCH. Violência policial e segurança pública no Rio de
Janeiro. Dezembro de 2009.
IANNI,
O. Escravidão e racismo. Sao Paulo: Editora HUCITEC, 1978.
KROSSLING,
K. S., As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob vigilância
do DEOPS/SP. Dissertação de mestrado defendida na Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2007.
LENIN,
V. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: editora
Global, 1982.
MATTOS,
Vanessa. Esquadrões da morte: a maquiagem vermelha. Revista das
Américas, n. 9., 2011. Nucleo de estudo das Américas. Universidade
do estado do Rio de Janeiro. Disponivel no endereço:
http://www.nucleasuerj.com.br/home/phocadownloadpap/9d.pdf
MARX,
K.: ENGELS, F. A ideologia alemã. Boitempo. 2007.
MISSE,
M. Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por
policiais na cidade do Rio de Janeiro- 2001-2011.
TROTSKY,
L. La teoria de la revolucion permanente: compilacion. Buenos Aires:
CEIP “Leon Trotsky”, 2000
1.
Estudante de Letras da USP.
2.
l afirmação se refere à compreensão
marxista de organização econômica como infraestrutura de uma
sociedade, que determina diretamente os que serão capazes de
produzir ideias em maior escala e, assim, dominar as ideias daquela
sociedade, fazendo dela sua imagem e semelhança, através de
profundas distorções, visto que a maneira como uma classe dominante
enxerga a sociedade só faz sentido para os que compartilham da mesma
base material. Aos outros, para aplicá-la, é preciso distorcer sua
própria
realidade.
“As ideias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal
das relações materiais dominantes, as próprias relações
materiais dominante são concebidas como ideias; portanto, as
relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante são
também as que conferem o papel dominante às suas ideias. Os
indivíduos que formam a classe dominante também têm, entre outras
coisas, consciência e pensam; logo, enquanto dominam como classe e
enquanto determinam todo o âmbito de uma época histórica,
compreende-se que o façam em toda a sua extensão e,
consequentemente, entre outras coisas, que também dominem como
pensadores, como produtores de ideias,
que
regulem a produção e a distribuição das ideias do seu tempo; e
que as ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época”.
(Marx, K.: Engles, F. A ideologia alemã. Boitempo, 2007)
3.
O decreto foi publicado como anexo ao AI-5, e pode ser lido
integralmente no link do Senado:
http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=179024.
4.MATTOS,
Vanessa. Esquadrões da morte: a maquiagem vermelha. Revista das
Américas, n. 9., 2011. Nucleo de estudo das Américas. Universidade
do estado do Rio de Janeiro. Disponivel no endereço:
http://www.nucleasuerj.com.br/home/phocadownloadpap/9d.pdf
5.
KROSSLING, K. S., As lutas anti-racistas dos afro-descendentes sob
vigilância do DEOPS/SP. Dissertação de mestrado defendida na
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. p. 187.
6.
Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/
7.
Dados e informações da guerra civil angolana:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Civil_Angolana
8.
Dados retirados da ONG Iraq Body Count: www.iraqbodycount.org
9.
Idem nota 6.
10.
Dados retirados do Instituto Avante Brasil, advindos de pesquisas da
Secretaria de Segurança Pública. É possível ainda acompanhar a
relação entre homicíos culposos (sem intenção de matar) e os
homicídios dolosos (com intenção de matar), onde dos 15,5 civis
mortos, a proporção favorece o intencioal numa razão de 11,48.
http://www.institutoavantebrasil.com.br/brasil-discriminacao-etnica-e-guerra-civil/letalidade-da-acao-policial-notas-para-reflexao/
11.
O artigo coordenado pelo Prof. Michel Misse, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (“Autos de resistência: uma análise dos
homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro”,
2001-2011) faz uma exposição do termo, analisando centralmente a
sua prática ideologizada para maquiar execuções sumárias.
12.
“Forca Letal: Violência policial e segurança publica no Rio de
Janeiro e em São Paulo”, Human Rights Watch, Dezembro de 2009.
13.
Noticia publicada em 3 de dezembro de 2010 no site da Folha de São
Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0312201017.htm
14.
Neste vídeo é possível ver a ação do policial dentro da
Universidade: http://www.youtube.com/watch?v=xbobyDHtImE
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