Escritos sobre a Dialética radical do Brasil Negro – Clóvis Moura.
Cap. IV: Especificidades e dinamismo dos movimentos de São Paulo:
O Negro urbano emergente: novos aspectos da questão racial (p. 279)
Começo minhas considerações sobre
esta obra pelo seu último capítulo, visto a necessidade de problematizar
aspectos da militância negra que dizem respeitos à subjetividade do negro nessa
sociedade de classes racista, e que certamente interfere também na sua
militância cotidiana. Acredito ser esse um passo inicial importante para
podermos então, como parte da militância nos apropriar da discussão riquíssima trazida
neste livro sobre as relações raciais no Brasil, que é de acordo com a nossa história,
e podemos também dizer com a história do capitalismo mundial, se coloca como
elemento indispensável para o real entendimento do desenvolvimento da sociedade
de classes capitalista.
Tentarei
expor aqui a partir do início do trabalho assalariado a dinâmica subjetiva da
relação social do negro, que ao tentar buscar possibilidades dentro desse
sistema social se depara com códigos dominantes (racistas) que entram em
contradição com a sua própria experiência pessoal, gerando, segundo o próprio
autor a tendência à ansiedade e agressividade numa relação ambígua.
No
pós-abolição os negros foram submetidos a uma desarticulação social (acredito
que deva ter a ver também com as diferenças de interesses que se dá com a
passagem do trabalho escravo para o assalariado), mas como resistência, alguns
setores conseguem se organizar de formas paralelas, nesse processo é possível
observar diversas movimentações e dissidências que tem como base fatores
materiais e ideológicos. Uma dessas dissidências tem a ver com um setor que
carrega a ideologia de que os negros devem se igualar aos brancos moral e
culturalmente, essa linha de pensamento é muito parecida com a de Brook. T
Whasington nos EUA.
A
mudança para o trabalho assalariado coloca para os negros uma outra realidade
material, mas é importante frisar que o fim da escravidão não significa o fim
do racismo, mas sim sua transformação para adequar-se às novas necessidade da
classe dominante, que por ser herdeira direta dos senhores de escravos ainda
carregam fortemente o racismo como base de seus pensamentos, e que também
precisa perpetuar essa ideologia como parte do processo de extração de
mais-valia e para cumprir o seu papel na divisão internacional do trabalho.
Ao
analisarmos os negros num país como o nosso, percebemos que: “(...) o seu
comportamento está fundamentalmente marcado pelo relacionamento que havia entre
senhores e escravos no passado no nível de dominação/subordinação. Essas
reminiscências produzem, por seu turno, mecanismos sociopsicológicos de
compensação simbólicos – de desajustamento, reajustamento e ajustamento -,
fazendo a sua personalidade ser atingida e impossibilitada de reagir a não ser
de forma diferente das camadas brancas, diante do mesmo fato”. (p.280-281)
A
dialética subjetiva da relação do negro com a sociedade de valores
hegemonicamente brancos é bem complexa. Quando pensamos no universo negro
pobre, as condições materiais os colocam “num semivácuo ocupacional e cultural
por não ter quem o queira preencher” (p. 282). A partir deste lugar, então,
começa a entender a sociedade como algo estático, ahistórico e eternamente
hierarquizado, procurando uma saída religiosa para os seus problemas, ou
assumindo um comportamento agressivo.
Nesse
caso, devemos entender a criminalidade também como parte de um comportamento
agressivo. Fruto não só das condições materiais, mas também estimulada pela
necessidade de reagir a opressão e pressão que sofre a partir da hegemonia de
valores brancos que os subordinam. Se dá, quase, como uma vingança simbólica. Esse
elemento de vingança simbólica aparece no conteúdo de diversos RAPs dos anos
1990. Em muitos casos, contraditoriamente, os frutos dessa criminalidade servem
para que os negros também alcancem um status de branqueamento, principalmente a
partir de padrões e valores de consumo brancos.
Assim
como já apontavam C.L.R. James e os Panteras Negras, Moura aponta que há certa
desconfiança negra em relação aos brancos, fruto da estrutura racista. Isto
leva os negros a ficarem em estado de alerta ao iniciar contatos mais estáveis
e/ou patrimoniais com brancos. Essa dinâmica também é verdadeira no que diz
respeito às organizações partidárias ou sociais hegemonicamente brancas.
Em
relação à agressividade do universo negro pobre, a agressividade dos
intelectuais negros, principalmente do setor universitário se dá de forma
diferente. Se afastam (negam), consciente ou inconscientemente, do universo
negro pobre. “Por isso, criam uma forma de violência refinada, civilizada,
mediante formas de comportamento simbólico (cabelo Black Power e outras
manifestações exteriores) ou rejeição, inclusive em nível de relações pessoais
com brancos e brancas”. (p. 283-284)
A
agressividade do universo plebeu coloca uma crítica étnico social profunda, ao
ter como base fatores socioeconômicos frutos desse sistema de opressão e
exploração, assim como questionando-os. Já a agressividade negra
pequeno-burguesa nasce, centralmente, da necessidade de ganhar espaços sociais
individualmente, mostrando uma assimilação de valores individualistas e de
ascensão, esses acabam interiorizando parte importante dos valores capitalistas
brancos, levando em conta que os indivíduos desse setor já têm acesso a níveis
de vida e profissionais “compensadores”.
Clóvis dá como exemplo desta postura
pequeno-burguesa o negro universitário que: “(...) procura defender-se do
preconceito racial real não mais como simples negro, descendente de escravos,
forçando as barreiras criadas em todos os níveis pela sociedade branca para o
seu ascenso social, porém como cidadão negro que já alcançou um patamar de
integração relativa em termos da situação da juventude brasileira no seu
conjunto e negra em particular. Muitos, sensíveis a determinadas correntes
intelectuais, procuram reformá-las a fim
de adaptá-las à nossa realidade, sem, contudo, assimilar muitas vezes a
problemática na qual daria conteúdo sociologicamente radical a essa práxis
agressiva”. (284-285)
Essa
agressividade, pelo não entendimento profundo da dinâmica do racismo, não é
capaz de transformar esse descontentamento emocional em força política
revolucionária, levando quase sempre a problemas emocionais e/ou à
personificação da opressão por parte do negro. Então, essa reposta agressiva
não só não é capaz de atacar o verdadeiro problema (inimigo), como é capaz de
causar mais danos ao oprimido. Os negros de classe média, então, são colocados
em um dilema: ou se unificam ao universo negro plebeu na luta radical contra o
racismo, ou vão acabar reproduzindo os valores da pequeno-burguesia, que são na
sua essência racistas.
Clóvis
Moura tipifica o comportamento dos negros metropolitanos (acredito que podemos
pensar em expandir isso para os negros do país em geral) em: SUBALTERNIDADE;
AMBIGUIDADE; AGRESSIVIDADE; e ANSIEDADE. Esses comportamentos não se manifestam
sozinhos, mas relacionados em uma ligação complexa dialética.
“Já
os jovens negros da classe média diferem dos mais velhos e se realizam por meio
de uma das formas de agressividade sexual. A agressividade difere dos velhos em
dois planos: 1) Não são ambíguas, mas são, pelo contrário, apresenta
publicamente como elemento compensador. Procuram relações com brancas não
profissionais, que vão encontrar em grupos boêmios e supostamente radicais na
conduta sexual, em ambientes artísticos ou culturais onde essa forma de
liberalismo se pratica; 2) procuram prolongar essas relações em termos de união
semipermanente (encontros permanentes públicos, mas sem união definitiva), ou
amigação que raramente termina em casamento por várias razões: resistência da
família da moça (se for branca); saturação sexual dela e seu deslocamento para
outro país onde vai esquecer; falta de recursos econômicos satisfatórios”.
(288-289)
É
importante entender esses comportamentos levantados pelo autor como uma
resposta à contradição colocada por esse racismo que “aceita” o negro para
oprimi-lo. Se, por um lado, o negro faz parte dessa sociedade, por outro, essa
participação (necessária para o funcionamento da dinâmica do capitalismo) se dá
a partir de um não lugar, na marginalidade.
Ao
passo em que a negritude é colocada numa situação de inferioridade em relação à
branquitude, se dá a contradição de que: ao mesmo tempo em que,
individualmente, o negro tenta fugir desta cruel realidade, negando sua
inferioridade, é colocado e também se coloca nesse não lugar, na inferioridade,
lugar que já é conhecido por ele, é lugar comum. Ao tentar sair do não lugar,
procurando um outro lugar social, se depara com o fato de que esses outros
lugares só podem ser não-negros (ou seja, alcançados somente pela branquitude,
e em raras exceções pelo branqueamento), assim como que na realidade esse não
lugar é o lugar imposto a ele pelo capitalismo racista. Essas contradições gera
a mistura de comportamento que Clóvis discorre, que apesar de serem
comportamento fundamentais dessa dinâmica, são profundamente mais amplos e
complexos do que a pontuação do autor.
Ou
fim, é preciso problematizar o fato de que, centralmente, estes aspectos do
comportamento do “negro metropolitano” é balizado numa perspectiva do homem
negro. Dentro dessa lógica é perceptível como a dinâmica de emoções e
expressões, por muitas vezes, leva o homem negro à atitudes e pensamentos
machistas, e que, apesar de sofrer a mesma opressão racista, as mulheres negras
são obrigadas a conviver com o machismo, tornando a relação destas com a
sociedade machista e racista ainda mais complexa e penosa.
Me
parece importante pontuar que vários dos comportamentos dos homens negros devem
ser analisados e problematizados à partir da relação com o papel social
historicamente colocado (imposto) à eles: o do homem que é corpo, selvagem
(inclusive sexualmente), viril e não racional. Fanon discute alguns desses
aspectos em “ Peles Negras, Mascaras Brancas”.